Nos últimos anos notamos uma diferença na forma como nossas histórias passaram a ser contadas pro mundo. Não me refiro a um movimento isolado ou focado em um número limitado de pessoas, me refiro a histórias com um alcance imenso, por meio de filmes, livros, músicas, seriados, fotografias, enfim, as mais variadas formas de expressão artística.

Esse levante de vozes impossíveis de serem ignoradas tem nos apresentado uma nova versão da história dos homens no mundo. Existe um provérbio que resume bem: “Enquanto o leão não contar a sua história, o caçador sempre vai ser vitorioso”. Esse caçador tem diversos nomes: racismo, homofobia, misoginia, elitismo – um rol de personagens protegidos até então pelas barreiras do acesso ao controle da narrativa.

Embora existam reações positivas à essa reivindicação pelo controle da própria história,  é impossível não notar o incômodo causado. Para muitos, conviver e aceitar a história narrada em primeira pessoa por pessoas negras, não binárias, que não fazem parte da elite ou que desafiam os padrões de “normalidade” impostos por um grupo de homens brancos ricos há séculos atrás, causa um desconforto tão grande que torna o bom senso um caminho inviável.

Esse desconforto inclusive tem justificado uma onda de conservadorismo que, no momento, varre o mundo. O fato dos “cidadãos de segunda classe” , que deveriam se colocar no seu lugar e agradecer fervorosamente por terem sua existência permitida, terem conquistado canais para expressar sua voz, contar as próprias histórias e meios de circular por lugares antes impensados, causa desespero em quem vive no castelo de areia.  As histórias sob o ponto de vista do leão, além de desafiar estereótipos, expõem mentiras que foram absorvidas como verdades incontestáveis. E a destruição de mitos sempre causa dor àqueles que só vivem bem pela existência do mito.

As histórias do leão ousaram arrancar esqueletos do armário, e os amantes da narrativa original passaram a lutar de todas as formas para desqualificá-las. O monstro é muito feio para ser encarado de frente. Mas nada pareceu diminuir a quantidade de novas versões, que contêm uma força capaz de recuperar autoestima e impulsionar a organização e articulação política de certos grupos. Ficou sério. A partir daí,  os senhores do castelo adicionaram outros recursos na tentativa de parar essa movimentação.

Um dos lados mais sombrios da humanidade foi re-acessado. Um lado que justifica a violência e o cerceamento de direitos como mal necessário para resolver “tudo isso que está errado por aí”.  E, geralmente, parte do que está errado é jogado na conta das conquistas dos “cidadãos de segunda classe” – o fascismo foi embalado num pacote bonito que promete remover os males do mundo, mesmo que isso signifique sacrificar vidas no caminho.

Estamos todos envolvidos em um embate complexo, mas que também envolve a última tentativa radical de calar essa gente mal agradecida e defender o “cidadão de bem”. Esse é o motivo central do desespero: descobrimos o calcanhar de Aquiles. Sejamos flecha.

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