Por meio das chegadas transatlânticas extremamente violentas, escravizados africanos não trouxeram somente o corpo para a diáspora chamada Brasil. Trouxeram também seus costumes, sua forma de pensar, suas tradições e, principalmente, sua CULTURA. Baseado nisso, o samba como movimento cultural adquire características fundamentais desde o seu nascimento. Uma das principais são a corporeidade e a identidade NEGRA. E por intermédio disso, a PRESENÇA FEMININA sempre existiu e foi destaque na trajetória de resistência do samba por aqui.
Em um primeiro momento, a presença feminina apareceu quando o samba ainda só era a música dos escravizados africanos, fortemente marginalizado pela sociedade racista e eugenista. Traçando uma linha do tempo de sua história, o samba registra constantemente uma presença intensa das mulheres. Essas mulheres ocupavam lideranças em comunidades negras e por esse motivo fazia questão de fomentar as expressões e religiões não brancas no país.
É aí que surge o questionamento: por que as mulheres não são tão citadas quanto os homens do samba? Por que se julga a presença pequena de mulheres no samba? Afinal, elas não estavam na linha de frente já no início?
Foi aí que, no alto do meu privilégio como homem, vejo que o samba, mesmo com toda sua resistência e linda trajetória, sempre foi extremamente machista.
Existe uma estrutura patriarcal que promove a perspectiva de que as mulheres só estavam no movimento quando elas estão nas avenidas como musas ou quando estão gritando loucamente para homens no palco e sambando perto das rodas de samba. Essa perspectiva estabelece uma análise micro e preconceituosa do movimento, desconsiderando a pluralidade e união que o samba sempre estabeleceu no seu viés ideológico.
AS MULHERES QUE ESTÃO NO COMANDO!
Até o primeiro registro fonográfico do samba só aconteceu por conta de uma mulher. A música pelo “Pelo Telefone”, lançada em 1917, eram improvisos que já eram conhecidos por que comparecia às rodas de samba na casa da baiana Tia Ciata. A Casa de Tia Ciata foi expoente fundamental na fomentação do samba no Rio de Janeiro. No documentário “Tia Ciata- Filme”, a cantora Nina fala sobre a importância de Tia Ciata para o samba:
“ Sei que Tia Ciata foi mãe de Santo, uma grande agitadora cultural, uma grande promotora de eventos já naquele tempo. Uma pessoa muito resistente no âmbito do samba porque diziam que nas festas da Tia Ciata, ela tinha que negociar com os policiais para que a festa acontecesse. Haviam pessoas importantes dentro da festa. Pessoas importantes da política e tal. E era onde o povo se misturava por conta do evento musical e gastronômico que acontecia lá, né? “
Como esquecer de Jovelina Pérola Negra, Dona Ivone Lara, Alcione, Clara Nunes e Clementina de Jesus? Intérpretes que colocavam as mulheres como protagonistas em suas letras. Nelas os temas como relações amorosas e situações cotidianas apareciam bastante. Essas citadas, além de serem rainhas do nosso segmento, são expoentes fundamentais na construção de um samba plural, de narrativas diferentes, quebrando as regras daquele patriarcado que já dominava muito por si só e que estabelecia uma dinâmica que existiam poucas mulheres fazendo samba e que só os homens o faziam com qualidade. Como cita a autora e pesquisadora Maitê Freitas na entrevista dada ao TAB UOL(2019):
‘Se o samba é uma tecnologia social que critica e subverte a lógica dominante, como no caso de humanizar o homem negro, o gênero também é capaz de reforçar lugares sociais.“As relações dentro do samba acabam sendo contaminadas e reproduzem essas estruturas machistas, racistas, ali nas relações interpessoais.”
Quando falamos de samba, sempre citamos os arquitetos do samba, o Grupo Fundo de Quintal. O maior grupo de samba de todos só foi apresentado pro Brasil todo por conta também de uma mulher, a nossa madrinha do samba, Beth Carvalho, no disco clássico do samba “Pé no Chão”.
Os nossos mestres Bira Presidente e Ubirany citam na entrevista dada ao Som do Vinil a importância da Beth Carvalho não só para o grupo mas também pro samba:
“Quando ela chegou lá e viu aquela roda com falecido Neoci, Almir Guineto, Bira Presidente, Ubirany e só turma da antiga, ela se emocionou. Nos sentíamos ali uma inovação, um movimento, alguma coisa nova que estava acontecendo dentro do samba”
Outra expoente fundamental no nosso samba é a grande partideira extremamente politizada Leci Brandão. Leci Brandão é outra personagem que mostra como o samba sempre foi das mulheres. A grande compositora trouxe na sua arte muita alegria a quem ouvia e debates importantíssimos sobre a sociedade. Leci questionava em suas letras não só a questão de raça e gênero, questionava também a sexualidade. É também considerada madrinha por muitos grupos de sucessos, como o próprio grupo Revelação. A cantora sempre se conectou e respeitou gerações do samba, criando um laço de respeito e status também de madrinha. Atualmente atua na política e integra o Conselho Nacional de Promoção de Igualdade Racial e o Conselho Nacional dos direitos da Mulher. Na entrevista dada no artigo "Machismo e racismo na música: as mulheres negras no pagode dos anos 1990", da jornalista Natália Maria Freitas Duarte Geraldo, a artista cita as dificuldades e conquistas que teve durante sua carreira.
“As meninas, alguns grupos femininos tentaram, sim, formar seu trabalho. Tinha por exemplo o Roda de Saia…Alguns grupos foram formados por mulheres. Mas, assim, normalmente quem vai a show e programa de TV, o auditório é sempre feminino. E as mulheres gostam de bater palma para os rapazes. O público que estava nos auditórios era feminino. Então, o negócio era colocar a rapaziada para cantar. As meninas também eram bonitas, eram legais, tocavam bem, mas a indústria fonográfica não…” Leci Brandão
No Pagode 90 a mulherada estava presente.
Os anos 90 foi a época em que o samba mais reverberou comercialmente, com várias mulheres que o representavam muito bem nos palcos e nas rodas. Mas infelizmente sofreram com a estrutura patriarcal dos grupos de pagode “boy bands” e caíram no apagamento do grande público. Mas quem é rua de verdade e automaticamente conhece o samba na sua essência sabe que elas foram fundamentais para o crescimento do gênero. Uma grande referência é a cantora Eliana de Lima. Pioneira no crescimento do pagode na década e que tem grandes sucessos como “Desejo de amar”, “Undererê” e “Volta pra ela”, canções que explodiram de sucesso e são cantadas até hoje nos pagodes da vida. Outro exemplo é o grupo Fora de Série: destaque nos anos 90, foi um grupo formado somente por mulheres, com um repertório muito peculiar e com narrativas recheadas de histórias de relações amorosas e com refrões marcantes. O grupo continua sua trajetória, hoje com o nome “Som Mulheres”, representando o samba pelas ruas.
Adriana, do grupo Adriana e a Rapaziada, foi mais um destaque nos anos 90. O grupo estourou fortemente na época e sempre estava com as caras nos programas de TV da época. Uma estética musical muito característica do século, o samba conectado veemente com R&B. Muitas canções ficaram marcadas e foram literalmente um sucesso na rua e comercialmente.
Lugar de mulher é onde ela quiser!
Nos dias atuais, o samba continua emocionando e embalando a vida das pessoas. Porém, o machismo ainda prevalece. O investimento de grande gravadoras, as oportunidades dentro do cenário do próprio movimento ainda são muito pequenos perto dos homens, e as artistas mulheres enfrentam grandes dificuldades para conseguir seu espaço dentro do cenário do samba. Mesmo com essa problemática, as artistas não param de fazer sua arte e continuam no batente representando da melhor forma possível o nosso samba.
Ainda dizem que o samba não tem uma grande safra de mulheres artistas, isso é uma grande mentira. Quando paramos pra lembrar dessas artistas, são tantos nomes que não caberiam aqui. A grande cantora Ludmilla é ótima referência nisso. A artista que tem na sua estética musical relacionada a várias vertentes da música negra, nunca escondeu o seu lado pagodeira. Em janeiro de 2021, por exemplo, lançou o seu trabalho chamado “Numanice ao vivo” . O repertório desse trabalho mescla composições autorais e pagodes clássicos dos anos 1990 e 2000. De forma incrível, a artista chega se destacando em todas as canções. O projeto conta com participações de grandes nomes do samba como: Thiaguinho, Bruno (Sorriso Maroto), DiPropósito e Vou Pro Sereno. O álbum vem sendo um sucesso declarado e muito tocado pelo mundão afora.
Não podemos deixar de citar a cantora Karinah, que com grandes projetos audiovisuais vem sendo outra personagem de muito visibilidade no samba. A intérprete vem criando um movimento muito interessante da representação feminina no samba. Aproveitando muito bem esse mundo digital, ela vem colocando na rua trabalhos incríveis muito bem produzidos e com um repertório que merece muito a atenção do público. O seu canal no YouTube já passa de 200 mil inscritos e suas redes sociais já têm mais de 100 mil de inscritos.
A artista Gabby Moura é mais uma que está na bala há muito tempo representando o samba. Ela, que já tem uma carreira de muito respeito nas rodas de samba do Rio de Janeiro, com mais 20 de anos de carreira, é uma referência de que na rua o samba sempre teve mulheres na frente do movimento. Além de uma voz extremamente afinada e aveludada, é uma grande instrumentista e só pelo seu suingue do cavaco sabemos que ela não está de brincadeira. A artista foi semifinalista do The Voice Brasil em 2014. Em 2021, lançou um novo single, chamado “Eu superei”.
Falando em artistas da atualidade, veja essa entrevista com o grupo Entre Elas.
Já que citamos vários artistas, grupos que são importantes pro nosso samba, tive a honra de entrevistar um dos grupos com mais destaque nas plataformas de streaming atualmente, Entre Elas. O grupo teve sua fundação no ano de 2006, em Florianópolis, já completa 15 anos de carreira e uma história de muita resistência, perseverança e amor pelo samba. Confira:
Per Raps: Olá, meninas. Sabemos que a trajetória de vocês começou desde de 2006 ai em Santa Catarina, né? Com mais de 15 anos de carreira, como a construção do grupo se deu?
R: Gi Guides( vocalista) “Então, a gente tinha um grupo de amigas em comum e aconteceu da forma que acontece com vários grupos, né? Aquele evento, aquele churrasco, que onde a gente levava os instrumentos e saia um samba lá. Depois disso, a gente foi tocar num aniversário de uma das meninas do grupo num barzinho aqui de Floripa, o barzinho encheu e logo já veio o primeiro convite para fazer um samba. Nesse caso, a gente começou a gostar da brincadeira e na época era uma formação com outros integrantes. Porém,as coisas aconteceram muito rápido pra gente, e o grupo logo se destacou na mídia e começamos viajar o estado inteiro de Santa Catarina. Foi nessa oportunidade que vimos a chance de profissionalizar o grupo. Com a busca da profissionalização, chegamos a essa formação sólida aqui. Já temos 13 anos de formação e o nosso dia a dia é uma dedicação intensa e bem profissional ao grupo.
Per Raps: Na construção da identidade musical do grupo, quais foram os artistas que mais inspiraram vocês?
R: Gi Guedes( Vocalista) –Acho que é unânime em dizer sobre Fundo de Quintal, Zeca, Arlindo Cruz, Cartola e as mulheres à frente do seu tempo como Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Leci, Clementina de Jesus e Jovelina Pérola Negra. É muito importante citar essas mulheres porque se não fosse elas nós não estaríamos aqui e não veríamos a possibilidade também de fazer samba, né? Então tem que exaltar essas mulheres que abriram muitos caminhos e é o que a gente pretende com a nossa música. Que a gente passe e continue deixando esses caminhos abertos para que o samba não pare.
Per Raps: Na música ” O lugar da mulher”, vemos o quanto a canção aborda a discussão sobre esse machismo estrutural dentro da nossa sociedade e que reflete também no samba. Além do trabalho grandioso que vocês vem fazendo, como vocês enxergam o grupo sendo um dos expoentes fundamentais no combate contra o machismo sociedade e no samba?
R:Gi Guedes(vocalista)- O machismo é estrutural e está na sociedade. Sendo assim, não tem como o samba ser diferente. Se fosse diferente a gente veria muito mais respeito com as mulheres no samba. A gente sempre tem que estar provando um pouquinho mais, a gente tem que ficar botando as cartas na mesa pra mostrar que tocamos de verdade. A gente já sabia que isso ia acontecer desde quando montamos a banda. Sabíamos que ia ser mais difícil pra gente, que nós teríamos que correr um pouco mais. Porém, a gente gosta de abordar isso de uma forma leve, de uma forma que a gente não quer ser reconhecida somente como um grupo de samba feminino e sim como um grupo de samba e ponto. A gente se sente muito responsável SIM nessa representatividade de muita mulheres que se inspiram na gente. Não só na música, como na vida. Recebemos muitos relatos das pessoas e nos preocupamos muito em fazer nossa arte de forma leve e mostrar que é possível conseguir as coisas e estar em qualquer lugar que você deseja se dedicando e se preparando.A nossa ideia nessa música foi uma ideia de comemoração. A mulher de fato tá conquistando seu lugar. Quando a gente vai viajar pro Rio de Janeiro, a gente pega um voo com uma pilota mulher. Sempre quando vemos isso, a gente vai lá na cabine pra tirar uma foto. Hoje grandes empresas têm líderes mulheres. Além das donas de casas, que muita das vezes é pai e mãe e precisa se desdobrar para cuidar da casa e dos filhos.
Per Raps: Mediante ao machismo estrutural dentro do samba, muitos críticos e até mesmo amante do samba, acredita que a representação feminina ainda é muito pequena. Porém, quando analisamos a trajetória das mulheres,vemos uma grande quantidade de sambistas mulheres no segmento.Como vocês enxergam o apagamento feito pela sociedade sobre as artistas mulheres no samba?
R:Gi Guedes(vocalista) “A gente que tá na “pista” sabe que tem muita mulher que faz samba há muito tempo e você como músico deve saber também o quanto de artistas incríveis temos no nosso samba e ninguém fala, Tarso. Temos a Juliana Diniz que vem de uma família tradicional do samba e que canta há muito tempo, A Adryana Ribeiro ai de São Paulo e milhares de grupos que conhecemos em SP e RJ. A Eliana de Lima que a gente não tem nem o que falar nem o que falar de tão importante que ela é pro samba. A gente vê uma safra de novos artistas muitos talentosos além das outras artistas que já construiu seu legado no samba. Tivemos a oportunidade que gravar um projeto da cantora Karinah somente com mulheres. Lá nos conectamos com várias artistas e acreditamos que esse trabalho vem com uma força bem grande para atingir as gravadoras, a internet e o grande público. Dói lá no fundo da alma quando a gente vê um programa de televisão dizendo que quase não tem mulheres no samba e a gente sabe que é mentira. Pois tem muita mulher no samba fazendo com coração e de verdade sua arte.
A gente acha que estamos numa crescente na nossa carreira e podemos visualizar que essas participações e esses projetos podem criar um movimento muito interessante no samba.
Per Raps: Falando em mulheres no comando, estamos sabendo da música “Clube da Luluzinha”. Pode dar um spoiler do que está por vir? Vemos um grande projeto feito pelas mulheres do sertanejo. Podemos imaginar um projeto feito só por mulheres?
R:Gi Guedes(vocalista)O projeto é nada mais do que aquela happy hour da mulherada que só entra as mulheres mesmo. Onde os namorados ficam em casa, os maridos ficam em casa e depois do trabalho a gente vai se encontrar num bar tal e só mulher na parada. Clube Luluzinha mesmo. rs Estamos visando esse projeto com intuito de criar um crescimento feminino para mostrar nossa identidade e mostrarmos nossa paixão pelo samba.
Para acompanhar o artista, confira o site dele e se inscreva no canal dele no Youtube: