Do teatro para o cinema, “Medida Provisória” entrega uma alegoria de um futuro que poderia existir ou uma visão de algo que já existe?

– por Diego Silver

 

Taís Araújo e Alfred Enoch em “Medida Provisória”/ Foto: Divulgação

“Medida Provisória” finalmente chegou aos cinemas brasileiros e esse “finalmente” deve ser comemorado. O filme, que já estava pronto desde 2020, dependia de uma assinatura da Ancine para a distribuição internacional da obra, que é encabeçada por Lázaro Ramos, e essa assinatura levou 12 meses para ser entregue.

O que não impediu o filme de ser mundialmente conhecido, mas todo esse assunto levaria a um outro texto e algumas outras complexidades que não cabem aqui neste momento, mas vocês podem ouvir o próprio Lázaro falando sobre no Twitter Spaces.

A obra, que não é retratada em um período específico do Brasil ou em um local exatamente desenhado para tal, deixa esse que poderia ser um recorte histórico do país ainda mais interessante, como explica a sinopse do filme.

“Num futuro distópico, o governo brasileiro decreta uma medida provisória que obriga os cidadãos negros a ‘voltarem’ à África como forma de reparar os tempos de escravidão. A partir desse conflito e da história de amor vivida entre o advogado Antônio (Alfred Enoch) e a médica Capitu (Taís Araújo), o enredo mostra como o movimento Afrobunker vai lutar pelo direito dos cidadãos de permanecerem em seu país.”

Essa sinopse não deixa de remeter a um passado não tão distante e ao nosso cenário político, quando qualquer argumento de oposição política era recebido com um “vai pra Cuba”, aqui a frase se transforma em um “volta pra África”. 

Mas “Medida Provisória” consegue ser muito mais do que isso, “Medida Provisória” é o exemplo do novo cinema brasileiro, assim como diversas outras expressões artísticas nacionais, a nossa arte não tem rótulos e o filme consegue transitar de forma natural e tranquila pela comédia e terminar no drama ao logo dos seus arcos.

Uma obra que levou 12 meses para conseguir uma assinatura e que a sua sinopse já remete a última eleição ou qualquer outra em nossa história. Mesmo não definindo um recorte histórico, é um filme que nasceu de uma ideia maturada com o tempo.

Tudo isso teve como base uma história escrita para o teatro em 2011, “Namínia, não!”, do ator e escritor baiano, Aldri Anunciação, que assina o roteiro junto de Lázaro Ramos e Lusa Silvestre, e que para a expansão do teatro para o cinema, foi trabalhada por longos sete anos, até chegar às mãos da antropóloga Aline Maia e então ser gravada. Só que esse trabalho todo resultou em 29 versões do filme e três finais diferentes, para só então ser finalizado e entregue para a distribuição.

E essa riqueza de detalhes e diversidade de gênero cinematográfico empregou uma atuação primorosa do trio central dessa trama que tem Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge. Um trio de personagens completamente opostos e com os seus defeitos, um advogado com diabetes, uma médica que chega em um burnout e um jornalista tagarela e ansioso.

 

Seu Jorge em “Medida Provisória” com Alfred Enoch e Taís Araújo / Foto: Divulgação

A empatia gerada por esse trio nos leva a falas e momentos incrivelmente tensos, cheios de easter eggs da pluralidade e influências pretas em diversos cenários históricos, culturais e políticos do Brasil. A capoeira, o carnaval, a tensão ao dirigir um carro, a cerveja no bar e até a Princesa Isabel, tudo isso passando pela troca de uma pistola por um livro, e não qualquer livro, a obra entregue é “Entre O Mundo e Eu”, do Ta-Nehisi Coates, que é justamente um livro que fala sobre como o mundo enxerga as pessoas de pele preta e o livro ainda é entregue pelo Emicida.

Todas as cenas e sequências do filme foram desenhadas para impactar e gerar sensações diversas. Ao assistir “Medida Provisória”, você vai rir com o Seu Jorge, vai entender o que o Alfred Enoch está falando, vai se preocupar com a Taís Araújo, vai sentir raiva da Adriana Esteves e não necessariamente nessa ordem.

“Medida Provisória” é um filme que não é feito para chocar, mas um filme que é feito para refletir e gerar discussão. Um filme que é feito para que a audiência não consiga sair da cadeira quando terminarem os créditos. “Medida Provisória” é o melhor filme da carreira de Lázaro Ramos e assusta pensar que esse ainda é o primeiro filme do agora showrunner Lázaro Ramos.

No final do filme, a dúvida que fica é uma só. Quanto tempo falta para chegarmos ao momento retratado no filme? Porque ao mesmo tempo que ele parece ser algo distópico, ele se mostra tão possível quanto uma senhora PRETA não conseguir entrar no banco, um homem PRETO ser encarado de forma estranha ao dirigir um carro de luxo, uma mulher PRETA ser confundida com uma atendente de loja quando estava querendo comprar algo ou qualquer morte de pessoas de pele PRETA, afinal enterrar um preto é mais barato do que pagar seus direitos

“Medida Provisória” – Ficha Técnica
Dirigido por Lázaro Ramos e Flávia Lacerda (Direção Colaborativa).
Escrito por Lázaro Ramos, Lusa Silvestre, Aldri Anunciação e Elísio Lopes Jr.
Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Mariana Xavier, Flávio Bauraqui, Emicida e grande elenco.
Duração 100 min.

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