Nos anos de 1920, o blues passou por uma transição estilística, deixando de ser rural para se tornar urbano. Essa mudança e iniciou com a migração de milhares de trabalhadores negros do Sul dos Estados Unidos, principalmente o Delta do Mississipi, para buscar melhores oportunidades no Norte (bem longe da exploração dos fazendeiros brancos). Em Chicago, Memphis e Nova Iorque, o estilo evoluiu e se adaptou ao ambiente. Com o tempo, o teor das letras também ganharam outros direcionamentos. A dura realidade da vida no campo ficou em segundo plano. O sexo e as desilusões amorosas se tornaram o mote principal. Essa virada de chave, também contribuiu para que o blues entrasse de vez na indústria da música. No caso do blues, jazz e gospel, o mercado era direcionado ao público negro (por isso eram rotulados de música racial: feita por negros para negros). Apesar disso, os brancos lucravam e ditavam as regras.
O blues tem suas complexidades. Algumas delas é possível compreender no filme “Ma Rainey’s Black Botton” (A Voz Suprema do Blues), dirigido por George C. Wolfe e protagonizado por Viola Davis e Chadwick Boseman O enredo, baseado na obra de August Wilson, acompanha um dia de gravação de Ma Rainey nos (precários) estúdios da Paramount em Chicago. “Black Botton” é a música a ser captada. Naquele momento, Ma já está pegando a estrada do fim da carreira, depois de gravar centenas de compactos e fazer shows para comunidades negras do sul e centro-oeste estadunidense com sua companhia Rabbit Foot Minstrels.
Apesar do período não ser favorável para os negros, principalmente para as mulheres, inclusive nas cidades do Norte, Ma Rainey não baixava a guarda. Batia de frente sem medir as consequências. Tinha dinheiro, influência, autonomia, poder. Dificilmente passava despercebida (e não tinha como) por sua baixa estatura, corpo volumoso, “extravagância”, e por não esconder escolhas, desejos e sua bissexualidade. Aos 18 anos, ela se casou com William “Pa” Rainey, abandonou seu nome de batismo, Gertrude Pridgett, e passou a ser chamada de Ma Rainey. Muito detalhista, ela prezava sempre pela qualidade. Por isso, só contratava músicos gabaritados: Louis Armstrong (trompete), Buster Bailey (clarinete), Charlie Green (trombone), Fletcher Henderson (piano). Levee Green, o promissor trompetista interpretado por Chadwick, que disputa espaço com a cantora durante a sessão, é um personagem fictício que tem sido comparado a Armstrong (em todos os quesitos).
A “briga” entre eles acontece justamente por causa do estilo de blues que deve ser feito naquele momento. Levee e o produtor da Paramount querem que o ritmo seja mais dançante, acompanhando a evolução musical da época. Já Ma Rainey bate o pé para fazer o tradicional. Ela é uma das grandes vozes do momento, mas sua pupila Bessie Smith começa a ofuscá-la ao entregar o que o público quer ouvir. Porém, Ma não se entrega. Segue firme no propósito para fazer o que a faz levantar todos os dias.
Apesar do formato teatral não ter agradado quem assistiu, “A Suprema Voz do Blues” faz um resgate da obra de Ma Rainey. Com o passar do tempo, e a queda da popularidade do blues, sua história caiu no esquecimento. O mesmo aconteceu com outras mulheres pretas que ajudaram a sedimentar a música: Mamie Smith (predecessora de Ma), Sister Rosetta, Victoria Spivey, Ida Cox, Alberta Hunter, Mahalia Jackson e a própria Bessie Smith. Essa não é uma cinebiografia de Ma Rainey, apenas faz o recorte que dá uma ampla visão da sua representatividade e importância.
Os diálogos entre o trombonista Cutler (Colman Domingo), o contrabaixista Slow Drag (Michael Potts) o pianista Toledo (Glynn Turman) e Green descrevem o cenário do final dos anos 1920 e início de 1930. As histórias que contam mostram os efeitos causados pela discriminação racial, a dominação do cenário musical pelos brancos e a desvalorização dos músicos pretos, que também movimentavam a indústria com o gospel e o jazz. Consequentemente, toda essa cadeia gerou frustrações em vulneráveis que foram descontadas em outros vulneráveis. Outros pontos a serem observados, que podem passar despercebidos, são (1) a influência do cristianismo na cultura afro-americana, e (2) o uso da maconha pelos músicos [algo tradicional entre eles desde sempre].