Não é de hoje que o Rap e o Funk se conversam: como dois gêneros musicais que nasceram e se consolidaram nas quebradas, eles têm uma trajetória em comum.
Voltando um pouco no tempo, o Miami Bass, marco zero do Funk Carioca, é um subgênero do próprio Hip-Hop. Desde então, quando chegaram aqui no Brasil sempre tiveram influência um sobre o outro e diversos artistas dos dois gêneros já fizeram som juntos.
Mas se eu for falar de todas as vezes que eles se cruzaram, não caberia nesta matéria, por isso que vou fazer este recorte.
A tradição da baixada:
A baixada santista é considerada a “segunda casa” do Funk depois do Rio de Janeiro, e já tem uma tradição de pelo menos 20 anos. Com os subgêneros consciente, proibidão e posteriormente ostentação, a escola da baixada se criou antes mesmo dele subir aqui pra capital paulista, e foi uma influência pra isso.
Nomes como Danilo e Fabinho, Felipe Boladão, Neguinho do Kaxeta, MC Primo, Careca e Pixote, Chiquinho e Amaral e DJ Baphafinha consolidaram esse estilo e fizeram história na região, apesar da repressão e preconceito. Repressão esta que, além de ser por classe social, é também racismo.
Entre 2010 e 2012, Felipe Boladão, DJ Felipe, Duda do Marapé, Primo e Careca, morreram a tiros na baixada. Os 5 casos ocorreram no mês de abril entre estes 3 anos e, além de não possuírem suspeitos, todos casos foram arquivados sem resolução. Mas foi graças à luta de MCs como estes, que o Funk paulista adquiriu tanto sucesso.
E quando subiu a serra, vimos na capital o legado da baixada, principalmente nas periferias da zona leste e grande SP: MC Daleste, Pikeno e Menor, MC Dede, MC Guimê e MC Lon são alguns dos nomes que compõem o Funk paulista.
O subgênero era principalmente na ostentação, mas proibidão e consciente também estavam presentes nos seus repertórios. E vindo pra cá, cruzou mais algumas vezes com o Rap, principalmente de SP.
É comum o meio do Rap ver este gênero musical mais imaturo, voltado para jovens, ignorando essa tradição. Mas muitos MCs, DJs e produtores do rap demonstram no som afinidade com essa escola, seja na letra ou nas bases.
Quem lembra do Emicida mandando um MC Rodolfinho nos shows depois de cantar Gueto – seu feat com MC Guimê? Separei algumas letras que também fazem referência a estes funks:
1- D’Ogum do Projeto Preto em Jogo de Negro:
“Boa esperança / Nessa andança, auto-ódio / Agora to sem perdão, pique Felipe Boladão / Verso sujo, cerro o punho, contra tudo de opressão”
2- Clara Lima em Vida Luxo:
“Fugindo do buxixo, indo atrás do dinheiro / Eterno Zoi de Gato / Gerando etiqueta, gestão toda em Euro / Liga quem vai”
3- Raffa Moreira (BC Raff) em Rockstar:
“Vocês gangstas falsos jogando GTA e eu drogado / Eu tô tipo em Guarulhos e vocês na Vila Madalena / Eu já falei, cês são boy e foda-se, eu sou Neguinho do Kaxeta / Vocês são MC Gui e eu já apareci no Datena”
4- Tasha e Tracie em E.D.B.B:
“E na minha quebrada tem da boa e tem da braba / E toda vez que nós passar na sua cabeça vai tocar / Olha o kit, olha o kit, olha o kit pá pá pá”
5- Marcão Baixada em Danny Glover:
“E onde eu chego, eu paro tudo, pique Boy do Charmes / Vagabundo fica puto, piripaque do Chaves / E se um dia tu ver um Maybach, sou eu que vou tá com a chave / Eu não sou da NASA, mas vou pilotar uma nave”
6- Coruja BC1 e Menor do Chapa em Aciona:
É impossível não falar dessa colaboração. Apesar do Menor do Chapa ser do RJ, ele tem uma conexão enorme com a baixada santista:
7- Kyan, Tasha e Tracie em Tang:
Com o sample de Mc Menorzinha “Essa é a nova da Menor, nós não paga pau pra ninguém!”
E por falar em Kyan, ao lado do produtor Mu540, a dupla é um dos maiores nomes do Trap original com esta influência do Funk. Os dois são da baixada santista e tiveram contato direto com essa cena para a produção de suas obras. E foi por esta vivência que chamei o Mu540 para trocar uma ideia conosco.
Com 24 anos, o produtor e DJ tem a proposta de apresentar, de uma maneira mais incomum, sons que nascem das mais diversas quebradas do mundo, mesclando tudo com o toque eletrônico, que é a sua marca. Suas produções vem sendo tocadas por DJs como Diplo, Dillon Francis e FS Green. Chama nas ideias:
Per Raps: Salve Mu540, satisfação. Primeiramente, conta um pouco da sua trajetória como produtor e DJ, hoje te vejo produzindo trap, drill, mas você tem duas mixtapes com remixes de funk, né? Há quanto tempo e como você começou?
Mu540: Eu comecei a flertar com produção com 13 anos, mas comecei a produzir mesmo com 14, aqui no jardim Melvi, produzia os MCs daqui na época, o Mc Japa e MC Cheiroso. Sempre gostei de Funk, a atmosfera que o ritmo passa é muito foda pra mim e cada Funk tem a sua.
Eu particularmente, sempre gostei de coisas mais fúnebres e sombrias e sempre procuro isso, ou misturo com outro clima às vezes. Trouxe isso na Música Popular Favelada Vol 1 (escutem lá).
PR: Como o Funk da baixada influenciou seu processo criativo? E quais elementos você tem usado hoje para, apesar dessa influência, manter a originalidade?
M: O Funk da baixada foi a minha cartilha de como agir na minha região: como os malandros da época falavam e o que era “descolado” na visão da minha galerinha da época, rs. A postura e as ideias do Funk da baixada são muito bonitas, alguns sons eu considero hinos, tenho usado muito esse viés saudosista e/ou nostálgico que pega o ouvinte que curte um Funk de verdade.
E é difícil perder a originalidade quando você é do mesmo lugar que suas maiores refs, então é como se eu tivesse continuando de alguma forma o que vários MCs que não estão mais entre nós começaram.
Ou daqueles que estão privados da liberdade, ou se viram sem alternativas e forças pra continuar e optaram por empregos mais comuns. E tipo, eu realmente sento pra produzir e sai algo que me agrada, na grande maioria das vezes.
PR: Fala um pouco dos samples que você tem usado, Mc Magrinho, Mc Menorzinha, Mc Lan, Mc Kauan… Como se dá a escolha deles?
M: Eu tenho vários critérios e jogos mentais para escolher samples, então depende muito do artista, do campo harmônico, narrativa da música e até às vezes do meu humor. Gosto de fazer as coisas soarem naturais e serem de fácil identificação do ouvinte. Mesmo que não seja um sample muito conhecido, dá pra fazer isso.
PR: Você fez praticamente todas as produções do Kyan, mas também muitas da Taya, dos caras da Moç e MCs de funk. O seu processo de criação muda conforme o MC que vc produz? Como funcionam essas parcerias?
M: Sim, sempre muda. Cada artista é uma brisa diferente e pra cada artista eu sou um Mu540 diferente, tenho que me adequar aos meus clientes e ajudar eles a se expressarem da melhor forma. E sempre gosto de trabalhar em conjunto, ver o que o artista quer e como a gente vai fazer pra ele ficar feliz ouvindo sua própria música pra ficar hypado.
Então eu não posso produzir do mesmo jeito com todo mundo, tem que conversar se entender, e às vezes não vai dar pra se entender e vai ter de abandonar o projeto porque música e arte é sentimento e as ideias têm que bater. Todo mundo que eu produzi foi porque tem uma brisa musical parecida com a minha.
PR: O que você tem estudado ultimamente? O que esperar das suas próximas produções?
M: Eu tenho estudado bastante física e matemática, filosofia e sociologia. E vários pdfs sobre produção que meus amigos me mandam. E estou sempre me deixando levar quando é dia de escutar música. Na rua eu não uso fone que é pra estudar o que está acontecendo na quebrada, qual é o som, qual é o papo, qual é a vibração e tal. Todo dia eu aprendo.
Das minhas próximas produções já finalizadas, podem esperar um som muito bom de ouvir e também bastante “truques” no meio dos beats. E das que eu ainda não finalizei, nem eu sei dizer o que esperar, até porque eu também estou ansioso pra saber o que eu vou fazer, rs
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