Quem me conhece, sabe o quanto eu aprecio um boom bap (nada contra Trap), é que boom bap me instiga mais, tanto pelas letras, quanto pelos flows e etc. Um amigo próximo me mandou um link do YouTube e disse “acho que tu vai gostar desse álbum”; cliquei, e o resultado foi tiro e queda: amor à primeira ouvida.
Eu não consigo me lembrar qual foi a última vez em que ouvi um rapper soar tão ‘cru’ e ao mesmo tempo usar tantas linhas fortes com referências à altura da cultura brasileira, e o Murica se instalou assim em meus ouvidos (e na playlist). “Eu comeria rua, passaria fome e escreveria pão” — essa foi a frase que me arrepiou, e tive a certeza de que esse MC tem um real compromisso com o hip-hop.
Murica chegou com os dois pés na porta com seu álbum Fome, lançado em 2019. Portador de uma voz que impõe firmeza nas linhas, o rapper do DF coloca suas vivências e autoafirmações em beats extremamente sujos, mas com aquela pitada de beleza característica da música popular brasileira. A “fome” que Murica coloca como título do álbum, “é a fome daqueles que tem vontade, a garra, a gana, a astúcia e o ímpeto de buscar o que é seu”.
Há um destaque especial na faixa “Liberdade Perpétua”, com Jean Tassy, quando o assunto é “musicalidade brasileira”. O saxofone no refrão faz frente à voz calma e melódia de Jean, que intercala versos com Murica na primeira estrofe da canção, causando uma sensação de estarmos ouvindo uma conversa de amigos, com visões iguais, mas com acentuações diferentes ao relatar. Um interlúdio nunca precedeu tanto uma “bomba”, como é o caso de “Diálogo”, que contém trechos de entrevista do quadro “Provocações”, da TV Cultura, e com uma entrevista feita com o rapper Filipe Ret dizendo que seu cérebro, na época da entrevista, era igual “ao dos caras que estão lá em cima”.
Muleque, Rap é afinidade com os traços
Murica – “Fome”
Não é só comprar a tinta, é intimidade com os quadros
Isso tá conectado com a raiz, é a vantagem de se andar descalço
Logo depois, começa a track, que para mim, é a mais pesada e suja do álbum: ‘Dragão de Incômodo’, em parceria com o DJ Lm. Murica não se segura (e nem faria sentido, visto como o álbum foi feito desde a primeira faixa), e cospe rimas totalmente brutas e ácidas, mostrando que chegou pra incomodar mesmo, no melhor estilo “hey, olha aqui, na era do Trap/Plug, eu tô chegando desse jeitão com boom bap!”.
O álbum segue mais “suavizado” com “Jaqueta Jeans”, onde Murica convoca Mat para rimar uma vivência bem simples, com direito à espaço para sentimentos de amor e tranquilidade, isso tudo sem deixar a essência “maloqueira” de lado nos flows e jogo de palavras.
O álbum é finalizado com todo o requinte “finesse”, a música derradeira é intitulada “Mandinga”; um boom bap simples, mas que vira algo muito complexo quando Murica chega com sua lírica totalmente “suja” (no melhor dos sentidos), e todo o contexto da “Fome” do álbum, é concretizado.
Fome é um dos trabalhos mais autênticos e exóticos do ano, ainda mais por estarmos vivendo em uma época onde a lírica já não importa tanto assim para o artista ser reconhecido no meio musical, seja underground ou mainstream. O álbum de Murica é o “puro suco do bueiro”, de tão sujo (liricamente e metricamente falando — o que lhe traz e ainda trará muitos ouvintes que prezam pela era ‘golden’ do hip-hop), é um novo episódio cultural pra MC’s, beatmakers e DJ’s voltarem a usar a referência de mesclar elementos musicais brutos à MPB, é uma bandeira levantada no tópico da autoafirmação das ruas, é o orgulho de um maloqueiro em fazer parte do hip-hop.
Ouça o álbum “Fome”.
Acompanhe Murica nas redes sociais
Spotify | SoundCloud | Twitter | YouTube