Se você já escutou uma música carregada de referências da cultura africana, que a cada linha te transportava diretamente à Terra Mãe, saiba que não foi por acaso. É isso que sentimos quando os Griots falam. Acredito que para os apreciadores do rap e da Cultura Hip Hop, Griot não seja uma palavra nova. E é isso sobre isso, rappers enquanto Griots, que esse texto se trata.
Afinal, impossível não lembrar do verso de MC Marechal: “Mensageiro, sim senhor/ Vagabundo se emociona porque sente o espírito dos ancestrais/ GRIOT”. Aqui ele está dizendo que rappers são uma espécie de Griots, e tenho que concordar com isso. É algo ancestral, entende.
O poder da palavra
Os Griots eram e são até os dias de hoje, indivíduos que têm por vocação, por chamado, preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo. Na África Ocidental, os Griots aconselhavam os membros das famílias reais, passavam adiante seu conhecimento sobre plantas, arte, tradições e eram os responsáveis por firmar transações entre o império e a comunidade.
Além disso, muitos Griots têm como base intelectual o Alcorão, fato esse que explica o porquê de grande parte da epopeia africana ter sua origem em países com forte presença islâmica. É importante destacar aqui, que diferentemente do que ocorre em uma sociedade ocidental, que tem como base para transmissão do seu conhecimento a escrita, em sociedades de tradição oral, a fala tem um prisma milenar e sagrado.
Ela tem poder de cura ou de destruição. E por entender o peso e o seu papel como guardiões da palavra, os Griots sabem que devem ponderar profundamente antes de se pronunciar. Entenderam a analogia?
Cena do filme Kiriku
Em um país extremamente racista, que apaga nossa história e nos impõe um padrão de beleza europeu, muitas irmãs e irmãos não têm noção da sua própria identidade, enquanto pessoas negras. E o rap surge como um resgate, uma saída, um espelho. Fazendo com que meninas e meninos vejam seus iguais e o mais lindo, entendam sobre sua ancestralidade.
Os novos Griots
A busca pela ancestralidade também está presente na nova escola do rap nacional. Do Capão Redondo, em São Paulo, o rapper Jovem Obama acredita que conhecer a antiga e extensa história do continente africano “me possibilita entender a grandeza de nós mesmos e os mecanismos que o sistema usa para nos controlar”.
“São 4 mil anos de império egípcio é um legado de gerações
é preciso saber em que ponto houve influência europeia
e entender o que vem deles e o que vem de nós.
Entender nossas próprias certezas do dia a dia, a forma
como a gente se organiza, enxerga nossos heróis atuais,
nossas inspirações.”
Em suas músicas, Jovem Obama procura compartilhar sua ótica, embasada em pilhas e pilhas de livros sobre a África que leu por curiosidade com seu nome de batismo. Falando sobre onde estamos, o que sonhamos, para onde queremos ir e principalmente, como estamos trilhando esse caminho, sem nunca esquecer de onde viemos.
Dar os meios para que possamos buscar saber sobre a nossa história, criando um pensamento crítico em relação a tudo que nos foi tido desde a infância é o que fazem as irmãs Tasha e Tracie.
Em POCO, as gêmeas trazem versos como “Prefere acreditar que foi alien do que um preto”, vestidas como Faraós Egípcios, elas fazem referência a construção das Pirâmides do Egito, uma das obras mais fantásticas do planeta por toda a sua complexidade e que foi apagada nos livros de história, negando o feito ao povo negro. Conceituais, artistas completas.
No seu verso, Tracie faz referência a Abuk, uma Deusa que deu a luz a uma nação. Segundo os mitos dos povos Dinka, uma tribo do Sudão do Sul, Vodun Abuk foi a primeira mulher a existir, além de ser a protetora das mulheres e dos jardins.
Em POCO, Tasha também menciona Juju Music, um estilo musical popular da Nigéria que as irmãs cresceram escutando. Derivada da tradicional música Yorubá de percussão, o gênero Juju Music surgiu na década de 1920 em clubes nas zonas urbanas do país africano.
A busca pela ancestralidade
E entender sobre sua ancestralidade foi o fez Emicida, quando viajou para Praia (Cabo Verde) e Luanda (Angola), para produzir o álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (trabalho esse que ganhou um documentário incrível, que você pode conferir no link abaixo). Na bagagem ele trouxe um dos melhores álbuns a década.
Claro que não poderia deixar de falar de Mandume, uma de minhas faixas preferidas da obra. O nome da música é uma homenagem a Mandume Ya Ndemufayo, o último rei dos Cuanhamas, um povo pertencente ao grupo etnolinguístico dos ovambo do sul de Angola e norte da Namíbia.
É díficil escolher um trecho de Mandume, mas vou ficar com o verso de Amiri, quando ele começa dizendo “Mas mano, sem identidade somos objeto da História” é de arrepiar. Então ele continua, “Eu senti a herança de Sundi”, uma referência a Sundiata Keita, o lendário Rei Leão, que governou o Império do Mali por quase 20 anos. Um Griot transmitindo conhecimento.
Esse texto não tem a pretensão de trazer todas as referências africanas presentes no rap brasileiro, mas sim mostrar é que possível aprender cada vez sobre a nossa ancestralidade com um simples exercício, ler. Leia as letras dos seus raps favoritos, faça suas anotações e parta em busca de conhecimento.
Somente entendendo quem nós somos, de onde viemos é que poderemos contestar falácias racistas, como a que diz que somos descendentes de escravos. Entenda, somos descentes de um povo rico, intelectual e financeiramente. Somos descendentes de Reis e Rainhas e nossa cultura é rica e linda.