“A todas presentes no lugar, peço licença pra entrar”
Saudando a todas que vieram antes e todas que ainda virão, com o trecho do som de abertura, “Saudação”, Mel Duarte lançou no último dia 2 de agosto seu álbum Mormaço – entre outras formas de amor.
Cria da cidade de São Paulo, poeta, slammer, integrante do coletivo Slam das Minas SP, produtora cultural e também escritora, Mel traz uma bagagem cultural rica e por meio de seu disco busca mostrar outras vertentes de si mesma e trazer à mesa novas pautas.
O álbum foi produzido no formato de spoken word, um gênero em que as letras das músicas, histórias e poemas são recitadas ou declamadas ao invés de cantadas e que ainda é pouco difundido no cenário musical brasileiro. Só isso já diz muito sobre o pioneirismo e ousadia que o disco pode representar pro cenário musical.
O álbum, que conta com a produção de DIA (que já trabalhou com artistas como Linn da Quebrada, Tássia Reis e Rimas e Melodias), mergulha profundo nas questões afetivas, ancestrais, proporcionando uma experiência sensorial imaginativa a cada faixa. O Per Raps trocou uma ideia com a Mel sobre sua trajetória na poesia, influências e sobre como foram seus processos de criação do disco, confira:
Per Raps: Em uma de suas biografias lemos que você escreve desde os 8 anos de idade. Conta um pouco sobre esse seu interesse desde pequena pela escrita pra nós? Existiu algum incentivo por parte de alguém?
Mel Duarte: A escola me apresentou a poesia e eu me encantei, não sei explicar muito bem porque foi um processo muito natural, muito despretensioso. Com essa idade ninguém se preocupa em te incentivar a ser escritora, poeta e no caso da minha família também não atrapalhavam (risos) então fui indo, na adolescência minha mãe viu que eu levava a escrita realmente a sério e começou a se envolver mais. De qualquer forma, mesmo não sendo incentivada diretamente pela escrita ou oralidade, por meio de outras artes meus pais me deram boas referências.
Per Raps: A sua trajetória no cenário de Slam é extensa e bem pautada na luta, na defesa do direito das minas pretas, conta um pouco pra gente como que você se introduziu nesse meio, houveram parcerias chave nesse momento?
Mel Duarte: Acredito que temos diversos momentos na vida, eu sempre gostei de falar sobre sentimentos e coisas subjetivas, quem me conhece desde o começo sabe bem disso, mas também fui entendendo como minha voz estava reverberando e outras questões começaram a me deixar inquieta. Eu sempre mesclei muito os assuntos que permeiam a minha escrita, mas os poemas com viés militante são os que mais tomam grandes proporções – e que particularmente nem são os meus favoritos (risos) – eu sou cria do sarau, comecei nesse rolê a mais de 10 anos então tem uma trajetória e conforme a Mel amadureceu os assuntos e coisas a se dizer também. Quando cheguei no Slam em 2011, percebi que ali era uma outra plataforma onde as pessoas poderiam conhecer meu trabalho e justo nessa fase eu estava pra poucas ideias, mais sangue no zóio mesmo, e não houveram parcerias não, quando adentrei essas cenas contava nos dedos de uma mão as mulheres negras que via se apresentando, no começo foi um rolê bem solitário na real e me alegra hoje ver que isso mudou completamente e que posso compartilhar a minha experiência com quem tá chegando agora.
Per Raps: Vindo da poesia de Slam, da declamação e agora partindo pra um novo cenário de construção, como foi pra você o processo de criação e produção dos sons?
Mel Duarte: O processo dos sons de Mormaço foram muito leves, trabalhar com o DIA foi uma diversão, somos muito amigos e ele entendeu perfeitamente o tipo de sentimento que eu queria passar, conversávamos praticamente todo dia, a cada nova ideia, melodia, dúvida (risos) foi uma delícia produzir esse trampo, trabalhamos no nosso tempo, com pessoas que queríamos e com liberdade pra dizer o que não podia faltar e o que precisava sair. Eu já estava cozinhando esse projeto a alguns anos e quando resolvi colocar ele em prática levei 6 meses. Tudo foi no tempo certo e estou muito satisfeita com o resultado.
O disco conta com fotografia assinada pela baiana Helen Salomão, que já trabalhou ao lado de Baco Exu do Blues e faz da fotografia um instrumento de política e ressignificação da imagem do negro e seus corpos.
Per Raps: A gente pode entender esse momento como uma transição na sua carreira?
Mel Duarte: Sim, com certeza. Pelo fato do amadurecimento da minha escrita e postura. Estava com a necessidade de parar de atender a demanda das pessoas com coisas que elas queriam. Precisei me olhar e entender aos 30 anos de idade e mais de 10 na cena, o que eu queria oferecer, sobre o que eu queria falar. Fazer esse disco que é algo muito novo pro público tanto da poesia como da música aqui no Brasil é pra mostrar uma outra vertente do meu trabalho e trazer novas pautas também.
Per Raps: Escutando os primeiros sons que foram soltos tive a percepção de que houve a intenção de falar sobre cuidado e afetos. Falando de uma sociedade extremamente polarizada, de disseminação de um ódio transparente e gratuito, você acredita que podemos criar e nutrir esses afetos de uma forma que não nos tornemos passivos?
Mel Duarte: Mormaço veio justamente pela minha necessidade de falar sobre amor, sinto que a gente vai se desapegando das coisas simples e sutis que fazem a diferença. Minha intenção é propor uma pausa no meio do caos pras pessoas se deixarem levar, lembrarem que o afeto é importante e que precisamos muito levantar essa bandeira para enfrentar a realidade dos dias que estamos vivendo. Eu acredito tanto que a gente pode nutrir esses bons sentimentos que fiz um disco pra lembrar as pessoas e a mim mesma disso.
Per Raps: A gente sabe que o rap desde sempre age como a poesia dos excluídos, vindo por vezes também com um discurso crítico frente ao discurso dominante, por trás de toda criação existe uma vontade e existe também uma objetivação, qual a sua intenção com a criação de Mormaço?
Mel Duarte: Mormaço antes de tudo vem pra dizer pras pessoas “EU NÃO FAÇO RAP!” (risos). De 10 faixas nenhuma é de rap. Acho que já tem muita mina foda nessa cena e o lugar que quero ocupar ainda tá mais excluído, com menos gente fazendo. Grande parte das pessoas acham que porque eu faço poesia automaticamente sou rapper e não é assim que funciona, pra mim nem todo poeta é rapper e com certeza nem todo rapper é poeta, são escolas parecidas porém com suas diferenças. Tem noção que em pleno 2019 Mormaço é o primeiro disco de spoken de uma poeta, slammer negra brasileira? Abusada deveria ser meu sobrenome, ou doida talvez, porque resolvi investir numa coisa que nem tenho exemplo nesse país pra saber se deu certo, mas acho que é essa a intenção, sair do lugar comum mesmo, voltar pra minha essência e fazer o que vai deixar o meu espírito mais leve. O disco na verdade é uma desculpa para o espetáculo/show que daí é outra viagem da minha cabeça (risos), apresentação com banda, projeção enfim, uma outra experiência de show musical pra quem se permitir mergulhar nessa dimensão que estou criando e que em breve tá na rua! Meu objetivo com esse projeto é provocar um lugar sensorial no corpo que dá aquela vontade de sair correndo pra beijar na boca, ou ligar prx crush e falar: Bora hoje? Enfim, mexer com a libido das pessoas.
Per Raps: Houve uma inspiração maior para criação das tracks mais “love songs”?
Mel Duarte: A inspiração é essa energia escorpiana que passa nas minhas veias mesmo (risos). Tenho muita coisa escrita nessa pegada e gosto de falar sobre prazeres sem ser óbvia, pra mexer com a imaginação mesmo, tem versos que surgem por experiência própria mas a grande maioria não, acho que escrevo sobre coisas que gostaria de ouvir. A música que fiz com o Amiri por exemplo “Sentinela” saiu depois de ler um poema do livro da Cidinha da Silva “Um Exu em Nova Iorque” e era um poema pesado que falava sobre uma mulher que idealizou um homem e ele acabou com ela. O poema é pesado mas eu absorvi, me coloquei no papel dessa mulher e escrevi sobre uma relação bonita, sei lá, acho que ser criativa é isso, ir além… A mesma coisa com a faixa “Faminta” que tem participação da Bia Ferreira, escrevi depois de ficar refletindo sobre um poema da Stela do Patrocínio.
Per Raps: Por fim, conta pra gente suas maiores referências artísticas.
Mel Duarte: Pensando na escrita gosto muito do tom dos poemas da Elisa Lucinda principalmente os que falam sobre relações. Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Noémia Souza, Stela do Patrocínio, Eveline Sin e Maya Angelou. Na música cresci ouvindo Sade, Diana King, Les Nubians e Erykah Badu acho que o disco tem muito dessa pegada e nacional sou apaixonada pela Anelis Assumpção e pela Céu. Uma dica de disco que deixo aqui pra quem curtiu Mormaço: Ouçam o projeto “3 na massa” quando ouvi esse trampo a sei lá 7 anos atrás eu pensei: um dia quero fazer uma parada assim!
Se você ainda não ouviu “Mormaço”, ouça em: