Para se falar sobre Rap Gospel, é necessário compreender os caminhos pelos quais a música negra americana passou para chegar nessa vertente. Neste texto, Adailton Moura – o autor do livro “A indústria música gospel” (Scortecci, 2018) – retrata, de forma breve, como se deu essa passagem.
O rock ‘n’ roll, o jazz e o RAP (só para citar alguns) são embriões do blues, que está enraizado no Negro Spiritual, criado pelos africanos escravizados nas fazendas estadunidenses entre os séculos 18 e 19. As cantigas tristes refletiam – e acalentavam – a vida daqueles que cantavam para suportar, de alguma forma, as árduas jornadas de trabalho. E apesar de serem proibidos de professar a fé nos deuses de seus ancestrais, eles não abandonaram as raízes.
Convertidos ao cristianismo, os pretos criaram sua própria forma de culto, tendo como base as tradições preservadas no íntimo, inclusive a forma de entoar os cânticos, que eram direcionados por uma voz guia com respostas do coro e acompanhadas pelas batidas dos pés no chão e palmas – os instrumentos percussivos raramente eram permitidos nos momentos de “lazer”, aos domingos, mas foram proibidos após a Rebelião de Stono, na Carolina do Sul, em 1739, que resultou no assassinato de cerca de 40 negros e 20 brancos.
As músicas davam força para superar as lutas diárias e, ao mesmo tempo, transmitir mensagens codificadas. Com a catequização bíblica nas manhãs dominicais feita pelos senhores brancos, os cativos transformaram personagens das “sagradas escrituras” em representações da almejada liberdade. Os spirituals ganharam letras com teor religioso, sem perder a essência. A inserção de referências da Bíblia deu mais vigor às canções. Assim, surgiu o embrião do gospel, que mais tarde com Thomas A. Dorsey se tornou a versão religiosa do blues. “Quando cantavam, em júbilo, os homens raptados na África celebravam ao mesmo tempo os spirits de seus antepassados, seus ancestors […] Nos spirituals, Moisés não é mais uma figura bíblica, mas um ancestor, um antepassado que protege o destino dos escravos e mostra um caminho para a liberdade”, escreve Berendt e Huesman na página 205, do “Livro do Jazz”.
O blues nunca foi bem recebido pelos “crentes”, porque (mesmo tendo a estrutura musical do gospel]) continham letras “indecentes”, quase sempre focadas em desilusões amorosas. Era considerada música profana, vide as histórias que permeiam a vida de alguns tocadores, como Robert Johnson (o influente guitarrista de blues, que, segundo as lendas, vendeu sua alma ao demônio). A guitarrista Sister Rosetta não se prendeu aos esteriótipos. Fez seu caminho tocando na igreja e nas casas de blues. Se tornou a pioneira do rock. Já Mahalia Jackson, desprezou o blues para se tornar a “maior” cantora de gospel da história. Cantar a música do diabo não estava nos planos dela.
A mesma rejeição aconteceu quando a música cristã contemporânea se fundiu aos “ritmos diabólicos” do soul, funk, disco e RAP. Mas (felizmente) a visão da igreja evolui – ou quase. Muitos concluíram que essa poderia ser uma forma de apresentar o evangelho aos não cristãos. Porém, levou-se um tempo para que isso acontecesse. Andraé Crouch foi quem abriu as portas nos anos de 1970, fazendo apresentações em programas de tevê para mostrar que a música de igreja também podia se fundir aos sons que estavam em alta na época, principalmente os feitos pela Motown. Logo na sequência, Aretha Franklin expôs ainda mais a música da igreja nos meios seculares ao gravar ao vivo “Amazing Grace”, em 1972, no New Temple Missionary Baptish Church, em Los Angeles, na companhia do legendário Reverendo James Cleveland e o Southern California Community Choir. Esse foi disco que ela mais vendeu em toda a carreira – e até virou tema de documentário. Outro que fez sua contribuição foi Edwin Hawkin, que com seu coral de jovens ultrapassou todas as barreiras religiosas com o fenômeno “Oh Happy Day”, que vendeu em torno de 52 milhões de cópias ao redor do mundo.
A historiografia do gospel é gigantesca. Mas os pontos pautados foram determinantes para que o RAP tivesse uma certa aceitação entre os evangélicos. À margem, o RAP cristão (christian rap) criou seu próprio espaço com Gospel Gangsta, Grits, T-Bone, Cross Movement, DC Talk e P.O.D (estes dois últimos fundindo rap com rock). Um pequeno caminho foi aberto. O P.O.D conseguiu reconhecimento fora das imediações eclesiásticas. Já o Grits emplacou “Ooh Ahh” nos filmes “Velozes e Furiosos em Tókio” e “Big Momma’s House 2”, o que resultou na certificação de ouro por mais de 500 mil cópias vendidas.
Este texto foi dividido em duas partes. Na segunda parte, o autor analisa especificamente sobre o Rap Gospel no Brasil, fala sobre seus principais expoentes, bem como trata das dificuldades da popularização dessa vertente.
One reply on “Introdução ao Rap Gospel – Parte 1”
[…] ao Rap Gospel – Parte 1 e Parte […]