Mulheres pretas, pobres que deixam suas casas e filhos para trabalhar na casa de suas “patroas”, essa é a realidade de muitas famílias no Brasil e a história contada no filme da nova faixa Cidade dos Anjos de Filipe Ret, lançado no último domingo (30) no Youtube. Ret entrega nesse novo som uma composição formada exclusivamente pela sonoridade acústica do violão, sem a predominância do beat do rap e com uma produção cinematográfica sensível, eu diria que capaz de emocionar pelo simples fato de gerar identificação e levantar discussões pertinentes.
O filme narra a trágica história da primeira vítima de covid-19 no Rio de Janeiro, a morte de Dona Cleonice, tia do Lucas, empregada doméstica de 67 anos que aparentemente contraiu a doença após a patroa voltar da Itália, para retratar essa história, o filme conta com as personagens, Tereza, Maria e João.
Rodando sob a direção de Samuel Costa, da produtora Capuri.tv, com assinatura de roteiro por Ayana Amorim e Juliana de Jesus, os personagens da produção permeiam sob discussões recorrentes no país como questões sociais e raciais, religião de matriz africana, direitos trabalhistas e mulheres preta e ciclo geracional de trabalho precário. É exatamente aí que a identificação com o clipe bate forte. Particularmente falando (e imagino eu que muitos também tenham se identificado) o filme me fez mergulhar em imagens de alguns anos atrás, quando com 8 anos vivi a reprodução da narrativa que minha mãe e seus cinco irmãos também já haviam vivido. Chegou um momento em que eu simplesmente havia me acostumado a ficar só em casa enquanto ela saia para trabalhar na casa de alguma patroa ou ser babá dos filhos de alguma delas. É claro que, preocupada como sempre, fazia questão de deixar tudo mais ou menos preparado pra que as 6 horas sozinha em casa fosse o mais seguro possível. Graças a proteção de muito orixá, minha infância e todos períodos solo em casa ocorreram da melhor forma possível, o mesmo não foi possível para o menino Miguel e tantos outros filhos de empregadas domésticas. Quando conto essas memórias falo de mais ou menos 15 anos atrás, hoje, mesmo diante de uma pandemia, a necessidade escravocrata de ter uma empregada dentro de casa segue poupando direitos trabalhistas básicos e pondo em risco a saúde de cada uma dessas trabalhadoras domésticas no país.
Falando um pouco mais da construção audiovisual, durante os frames do filme vemos referências como Pantera Negra na mochila de João, as guias de orixás de religiões de matriz africana e a forte presença de citações e obras de mulheres negras como Angela Davis e Lélia Gonzalez, trazido como objeto de estudo da personagem Maria que estuda para advogar.
“Minhas inspirações e referências estão muito próximas e são memórias ainda vivas e atuantes. Esse projeto carrega muitos símbolos, que passam pela ficção, mas que trazem um referencial muito rico de vida. É como se a gente conseguisse finalmente documentar essas pessoas como elas são, com humanidade, com nome, endereço, com família e não como um número.” – Juliana de Jesus, roteirista
Assim como para a roteirista Juliana de Jesus, faço parte da primeira geração de minha família que finalmente consegue quebrar o ciclo geracional de prestacao de servicos em condições precárias e o filme Cidade dos Anjos, como produção do gênero de rap, levantando questões tão urgentes é mais que necessário nesse sentido. Fugindo dos clipes tradicionais e dando representatividade de forma majoritária para pessoas pretas na direção, o lançamento de Ret abre espaço para produções de audiovisual cada vez mais críticas, sensíveis e que condizem, de fato, com as realidades descritas.
“Eu, como rapper branco, reconheço e admiro que o gênero que eu escolhi para ser a minha arte é do povo preto. Nós brancos temos que ter essa consciência, temos que enaltecer essa cultura tão rica em musicalidade e ancestralidade e levar visibilidade para esse tanto de vozes que já existem e merecem ser ouvidas por todos”
Poder ver cada uma das referências e situações abordadas e enxergar nelas as minhas mais velhas, Ruth e Cecília, mulheres essas que representam cada uma das ‘Terezas’ que constroem esse país abrindo caminhos para as próximas que virão, é um verdadeiro fôlego de esperança.