O tempo é algo realmente engraçado e intrigante. Quem conhece o trabalho do Frequência Modulada, sabe que somos viciados em transferir histórias que a música nos oferece. E, ao pensar em um álbum que faz 20 anos em 2018, logo vem aquela sensação de que essa história se mistura com a minha. Em 1998, o rap já tinha passado por grandes vitórias (em termos de mercado, grana, alcance mundial), era linguagem única em todo um país, tinha já sofrido duas grandes perdas e ainda assim não parava de crescer. E nosso interesse enquanto apreciadores também não parava de crescer. E pensando nos responsáveis por alimentar esse meu interesse, cheguei aos beatmakers – e um dos primeiros foi Pete Rock, em “Soul Survivor”.
Pra quem já pirava nos trabalhos dele em dupla com CL Smooth ou mesmo na sempre lembrada obra prima “Illmatic”, na estreia de NAS, foi um presente ver um artista que cria a batida, faz os scratches e colagens, rima em bom nível e tem o poder de unir artistas em uma obra – é o que encontramos em praticamente todas as faixas desse disco lançado em 1998. Podemos ver uma quase totalidade de MCs da costa leste, fazendo valer o orgulho de Pete em ter o Bronx, em Nova York, como sua base, mas também a visão atenta em ver algumas colaborações pouco esperadas pelos fãs, por exemplo, Big Pun agressivo e divertido e um Common mais pacífico, bem no começo da fase “Soulquarians”.
https://youtu.be/_6wMVsW1Ws8
Começando pelos singles, o que talvez tenha derretido a sua cabeça também: a segunda faixa, “Tru Master”, em uma tacada ousada em colocar dois grandes expoentes, um do gangsta rap da Califórnia e outro do boom-bap de New York, em uma disputa de stock car. Com visual inovador para época, vimos Kurupt da The Dogg Pound e Inspectah Deck do Wu Tang Clan indiretamente ajudando a acalmar uma disputa que precisava acabar e, uma fase do rap profissional e com dinheiro no bolso estava apenas começando. Um segundo single vai para o outro lado da visão apurada de Pete Rock no que se refere a cantores: em “Take Your Time”, contou com a participação de Carl McIntosh e Jane Eugene, dois terços do Loose Ends, um grupo de R&B britânico que foi sucesso nos anos 80, um vídeo muito bacana que passa por uma festa que você gostaria de colar também – até o X-Zibit estava lá. E, durante as gravações de “Soul Survivor”, Carl McIntosh ainda fez alguns clássicos como “I Can’t Help It”, do MJ, só voz e violão – lindo!
Temos alguns outros destaques como a influência jamaicana de Pete Rock na faixa “Massive (Hold TIght)”, em que participam Beenie Man e o monstro sagrado Heavy D (nascido de fato na Jamaica e primo de Pete, sabiam?). A faixa “The Game”, com Raekwon e Ghostface Killah (do Wu Tang) e Prodigy do Mobb Deep – um boom-bap pra chorar de verdade. Tem também a “Da Two”, revivendo a eterna parceria com CL Smooth, relembrando do programa de rádio “Rap Attack”, apresentado por Mr. Magic e Marley Marl, como um dos primeiros veículos que tocaram suas músicas (tivemos um programa de rádio com o mesmo nome no Brasil também, vale lembrar).
https://youtu.be/aXGaKvuyRbE
De fato é um time gigante de participações: além das já citadas, temos Method Man, Cappadonna, O.C., Black Thought do The Roots, Rob-O, Lord Tariq e Peter Gunz (outra dupla que fez barulho), Large Professor, Kool G Rap, MC Eiht, Vinia Mojica, Miss Jones, Sticky Fingaz do Onyx e Noreaga. De novo: não é fácil juntar tanta gente assim em uma obra. É um estudo muito mais aprofundado do que simplesmente ajustar agendas e sessões de estúdio. Todos esses artistas participaram por acreditar e gostar do profissional e indivíduo Pete Rock. Na época foi feito um registro (assista abaixo) dessas várias sessões de estúdio e é fácil de ver o envolvimento de todos para entregar algo pronto para entrar para história – pois ali vemos um artista pronto para gerir e produzir conteúdo que subisse o padrão de qualidade, pronto para atacar em várias frentes, seja frente ao microfone, toca-discos ou a mesa de som no estúdio, e que fortificasse o modelo de produto compilando faixas com vários artistas do rap unidos (tão utilizado por caras como Hi-Tek, 9th Wonder, Babu e até Dj Khaled mais recentemente) e simplesmente firmar posição quando pensamos nos melhores raps de todos os tempos.
Nos dias de hoje, Pete Rock continua trabalhando, em tour, criando em parceria com as novas gerações (por exemplo o álbum “Don’t Smoke Rock”, com o rapper Smoke DZA) e focado em manter um rap original, atual e vivo.
Particularmente, um dos álbuns de cabeceira e pra vida, para o qual constantemente volto pra reviver essas sensações, igual essa que você está experimentando ao ler (espero, haha!). Eu devo definir “Soul Survivor” como um clássico que não se prende ao tempo, uma lição de casa obrigatória a quem queira entender melhor a linha do tempo do rap e uma garantia de trilha sonora perfeita, da primeira à última faixa, sem pular.
Ouça e entenda o por quê de ele ser o produtor favorito do seu produtor favorito. Vida longa ao Pete Rock!
LEIA MAIS:
- #Especial: Discos de 1998 e a nova fase do Per Raps
- #Playlist 1998: O melhor do rap e do r&b lançado há 20 anos
- “The Miseducation of Lauryn Hill” leva rap ao mainstream
- Os velhos e novos hábitos de consumir música
- Primeira coletânea do Espaço Rap completa 20 anos
- “Eu Tiro É Onda”, do Marcelo D2, usou 100% de samples brazucas